quinta-feira, 7 de novembro de 2013

FALA AÍ BRASIL... FLÁVIO MORGADO

Mais uma vez o poeta Flávio Morgado honra-nos com a sua presença neste espaço. Fala aí poeta...
Não precisa dizer também

Pensa o leitor. Não pode ele, nem em cartas que escreve ao autor do artigo, dizer, em compaixão: “Eu também!”. Deixa sentir-se incapaz de ser ouvido. Como se pode chorar à frente de um quadro de Van Gogh com nossos girassóis que o pobre holandês jamais regou. E regou. Deixa ele se entender, como em qualquer texto, que pensara ser escrito a ele, ali, naquele momento. Contra-assine o amor. Em silêncio. Não precisamos dizer também. Vim antes de sua resposta.
Porque vim antes e me desesperei com seu atraso. E tendo vindo antes, vi-me eu menino acreditando nos livrinhos que a tia me ofertava por ouvir quieto o conto de Crusoé. E por isso gostei de ter com as palavras. E fui buscar nos primeiros versos lidos o amor que se aprende e se repete. Pra aprender a sofrer e escrever a você que tardava. E olhava da janela de meu quarto alto o ponto futuro de que falava Rimbaud; pra chegar antes e lhe avisar do estado de cada coisa; e aprender antes os versinhos para oferecer seu primeiro poema. Não pude esperar demais. Os outros também podiam a esperar.
Porque andei com meus fantasmas pela rua como se o mundo se soubesse de sobreaviso, e da sua sacada você me via gesticulando sozinho e dizia: “O poeta, mãe!”. E ouvi atento o que dizia e me senti lúcido. E compartilhava com outras vozes antes de mim a espera. Fiz-me contemporâneo de outros tempos e jamais estive só. E eles sorriram me afagando os ombros quando você dobrou sua esquina de aguardo e angústia.
Vim antes para habitar meu vazio. E então pudesse recompor meu carinho, querida. E me ensinar a usar o termo “dúctil” em poesia. E me reconhecer ansioso. E a amá-la desconhecida e ver crescê-la. Até perder a fé na unidade e ter a paz no conflito. A me obrigar a ser o outro. A desacreditar e achar benção sua presença (in)esperada. A encenar em mim sua espera. A chegar antes, em meu nada, e reconhecer que à luz da ausência, todo sapato já fora calçado.
Porque treinei amor. E me senti estrangeiro em cada perna que entrava pra sentir o corpo e saber dar. Porque não neguei uma rosa entregue sequer, mesmo ouvindo engano. Porque cheguei a dormir à porta da amada errada que me cobriu a testa de beijos piedosos num segredo de vocês duas (e todas as outras!). E no dia que fui ao seu encontro, todas elas me arrumaram a roupa, pentearam meu cabelo e disseram: “Faz tudo de novo!”. Porque deixei minha armadura na porta ao entrar na sua casa e deixei me sangrar de passado.
Porque não burilava ainda os meus versos e não me queria poeta como os outros, fez-me esconder sua ausência na página em branco como recurso. Acharam estilo. E você riu a me ver gago declamando, pois sabia de cor os versos da lacuna. E me fez falar aos surdos como se precisasse não me deslumbrar para que pudesse ser sua a voz que me diria que as luzes são mais sinceras no escuro. E maldisse toda crítica ao meu segundo lugar. E quis oferecer jantares aos que me elegiam.
Porque investiguei suas fotos e vi que amava James Dean. Comprei um quadro dele e pus na parede bem à altura de seus olhos. Comprei uma jaqueta e fiz uma foto fumando. Desarrumei estrategicamente meus livros ao seu olhar perspicaz. E, antes, li Drummond em três dias para citar um verso “como quem não quer nada”. E deixei a barba crescer, e desenhei falhas nela como a do galã de cinema que gosta. E planejei uma leitura nua de Vinícius. E estive nu diante de mim mesmo. Porque você me tirou de contexto - “antes, e com tal zelo, e tanto.”
Porque a angústia aguarda a cada homem, como cada coisa está para a outra. E foi minha pré-palavra. E abraçou a outros enquanto me via de soslaio, para eu acreditar que era surpresa. E tornar o amor à prova como se não soubesse o antes. Pra erguê-la como solução. Como quem fura os olhos do pássaro para o pobre cantar melhor. E seguimos a embaralhar nosso encontro.
Porque vim antes e tive que resguardar as palavras na presença de sua evocação. E porque ninguém acreditou nela e riu indiferente, disse que verdade mesmo era inventar-se a si próprio – e lhe compus. E dei ao silêncio tudo quando estamos fora de nós. Contei historinha antes do seu sono e fiz acreditar que na minha ausência, quando dorme, quando seu silêncio é povoado de memórias, sorrateiramente cresço dentro de você. Como se a minha distância fosse a sua possibilidade de me afirmar. E daí esquecesse a que veio, ao que deve. E um vazio incomum lhe preenchesse e se visse surpreendida com uma necessidade do absoluto. E então no momento que pensar ser útil inventar o amor, eu já serei percebido, e farei uma carta de amor aberta, que será publicada em uma revista portuguesa para que se sinta poeticamente única a todos os outros amores. Como lhe assinasse anónima em todos. E aí se pegará rindo de ver tudo destino e literatura. E eu não precisarei ouvir dizer “eu também”. Porque vim antes.



Flávio Morgado. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2013.

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